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segunda-feira, 10 de agosto de 2020

A CURA PELA PALAVRA | Kenny Teschiedel

 


Compreendo a escrita como um processo escavatório. Como se minhas dores recebessem sua carta de alforria para alcançar a liberdade das páginas e dos olhos dos leitores. Em geral, é a partir de um momento de intenso conflito que minhas histórias surgem. É demarcado, então, um corte lateral para que seja expulso esse elemento corrosivo que habita minha pele: a escrita.


Dessa fonte brotam as palavras e saltam as ideias convertidas em texto. Numa comparação simplista, é feito a música que encontra saída na garganta aberta de um cantor; como a tinta que escorrega das cerdas do pincel e lambem a tela a partir do toque do pintor. De repente, não seja tão simplista assim. 


E toda dor travestida de versos, cores ou melodia leva o artista à cura. Consiste, portanto, sem nenhum anestésico, na mais genuína cisão entre a dor e a criação. Um processo que (não deveria, mas) o torna dependente. Porque o sofrimento é, em parte, visceral para que se cumpra o ciclo. 



A primeira vez que passei pela experiência de tocar minhas próprias palavras a dor era da frustração. Coincidia com a primeira vez que eu submetia meus textos a julgamento e talvez não tivesse deixado sangrar o suficiente. Eram sentimentalismos e romantismos frágeis demais – não pelo que expressavam, mas pelas palavras que ainda não sabiam o curso a seguir. Desbravadoras, foram as pioneiras a abrir as comportas. 


Em seguida, a dor que emanava as palavras provinha do cotovelo. Foi talvez a ocasião em que mais aproveitei dos recursos românticos para produzir meu primeiro romance. A dedicação com que me entreguei àquela ocasional sangria foi salvadora. Resultou em afastamentos e superações. A cura pela escrita nunca foi tão providencial. 


Depois disso, houve um processo de maturação. Primeiramente, interno. As palavras deixaram de ser ferramenta e passaram a ser sintoma. Elas diziam de mim, daquilo que acredito e das indignações que me atravessam. Pessoalmente, era uma época de renovação. Era preciso contornar os rumos que eu vinha traçando, contrários à minha própria vontade. Logicamente, doía também. No breu caótico que me encontrava, as palavras acenderam minhas luzes. E clarearam meu caminho. Foi o curativo mais eficaz até hoje. 


Vem por aí um novo sinal deste processo, a concretização das minhas fraquezas e, por outro lado, revigorado pela força dos verbos. Meu novo livro é composto por este período incerto, em que minhas inseguranças se acentuaram ainda mais e puseram em xeque minha escrita. Porém, eu já fui arrebatado por esta arte. Ela nunca terá um efeito placebo.


A exemplo do que teci certa vez em uma aspiração a poeta, é preciso sofrer para escrever, já que até o lápis, ao deslizar sua ponta no papel, acaba deixando um pouco de si. 




BIOGRAFIA

Kenny Teschiedel (1992) é psicólogo, pós-graduado em Psicanálise e Acadêmico de Letras - Língua Portuguesa. Membro da Academia de Letras do Brasil - Seccional/RS (Cadeira 46) e autor dos livros "Toda Forma de Amor" (2013), "O Diário Secreto do Cavaleiro Mascarado" (2016), "A Palavra Perdida" (2019) e "O Rapto dos Dias" (2019, eleito o Melhor Drama e a Melhor Capa pelo Prêmio Ecos da Literatura). Prepara-se para lançar, ainda em 2020,  seu novo livro: "Estúpido Convite para Deixar de Existir".

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