Novidades!

Post Top Ad

Your Ad Spot

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

A insubmissão de Capitu - Tauã Lima Verdan

A DISSIMULADA OBLÍQUA EM “DOM CASMURRO”, DE MACHADO DE ASSIS: 

- A INSUBMISSÃO AO PATRIARCADO NA FIGURA DE CAPITU -



Por Tauã Lima Verdan

Ao se pensar o androcentrismo como aspecto cultural brasileiro, é preciso reconhecer o processo de assimilação e naturalização do embate entre os gêneros binários masculino e feminino. Neste aspecto, em decorrência dos fatores exógenos que permearam grande parte da formação histórica da sociedade brasileira, tem-se que a dicotomia dos gêneros se manifesta na forma de legitimação de poder e da relação de submissão da mulher em relação ao homem. Assim, valores de cunho moral e religioso foram estabelecidos como elementos capazes de estabelecer a submissão do feminino como prática revestida de normalização.

Ademais, ainda ao pensar no androcentrismo como aspecto formacional típico da sociedade brasileira, não se pode abandonar o conservadorismo e o tradicionalismo de tipos sociais como elementos indissociáveis. 

A mulher, em tal contexto, sobretudo até as primeiras décadas do século XX, afigura-se como um elemento de extensão da propriedade do homem. 

A legislação, inclusive, enquanto constructo ideológico e de manifestação de poder, vai ser responsável por conferir uma padronização comportamental, conferindo à figura do homem – o pater familias – o protagonismo na gestão da família. Aliás, aludida entidade é encarada como maximização dos padrões sociais, morais e religiosos estabelecidos, pois preserva-se como espaço em que o homem é a figura de centralidade e zela pela preservação da moral e dos bons costumes, já que é o responsável pela manutenção da ordem estabelecida.

Sendo assim, o discurso apresentado na perspectiva de Bento Santiago, personagem central do romance machadiano “Dom Casmurro”, não é neutro, eis que apresenta mecanismos aptos a controlar os meios de representação. Para Gualda (s.d., p. 02), “Dom Casmurro é uma obra concebida e construída a partir da centralidade e da visão soberana de um único sujeito, em que a mulher é sujeitada às determinadas representações normativas”. O romance coloca em explicitação as práticas sociais e discursivas em que se reafirma o patriarcado enquanto moldura formacional da sociedade brasileira, ou seja, a perspectiva que a mulher é percebida como objeto olhado, falado, desejado e consumido. Para Santos e Almeida,

Assim, percebe-se no discurso, como ele vai deixando marcas do patriarcalismo arraigado e alimentado socialmente, aspecto que revela o poder na esfera pública, ou seja, na escrita. Dessa forma, a narrativa de Bento Santiago fica sob suspeita em relação às suas insinuações sobre Capitu. Além disso, podemos ver que o poder, [...] se revela de várias formas, pode estar na fala ou na escrita e também nas ações, assim como pode se revelar em situações e lados diferentes, ou seja, o poder não está sempre de um lado ou com alguém o tempo todo, ele se revela de acordo com a situação de cada momento. No caso do discurso na obra de Dom Casmurro, o fato de Bento ter a fala o tempo todo e fazer juízo de valor sobre as pessoas de quem fala, mostra o poder dele enquanto narrador. Ao mesmo tempo, vemos que na trama da obra, ele mostra direta e indiretamente as faces do poder 
Emanoela Carolaine Silva Santos e Maria do Socorro Pereira de Almeida

A construção machadiana a respeito da figura de “Bentinho”, ao negar a voz e a manifestação de todos os demais personagens, faz a edificação de sentidos a respeito de todos eles e de suas respectivas ações. Bentinho, portanto, se torna senhor até do pensamento dos personagens, pois é ele próprio que analisa e constitui um discurso para expressar esses aspectos. Em complemento, a centralidade do protagonismo do patriarcado se externa em relação especial à figura de Capitu, eis que sua intenção é fazer o leitor seu cúmplice nas tramas de suspeitas acerca do papel desempenhado pela esposa.

O resto é saber se a Capitu da praia de Dona Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente. [...] Mas, eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, há de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca

Joaquim Maria Machado de Assis

A análise, vai além, pois pode-se realçar que Capitu foi vista pelos críticos como o motivo da ruína emocional do narrador, símbolo do patriarcado conservadorista que caracterizava a sociedade em que o romance se desenrola. 

A figura dessa mulher é acusada de trair o marido com o melhor amigo dele e, com realce, de enganá-lo com um filho ilegítimo. Isto é, ela é a manifestação do protótipo da mulher devassa, sem caráter e impostora. 

Os exemplos em que a figura de Capitu é colocada em uma perspectiva negativa e distorcida são pungentes, todos encontrando embasamento na esperteza da personagem em sua meninice, qualidade esta evidenciada por Bentinho, um homem amargurado e pouco confiável. 

“Capitolina – Capitu, como lhe chamava a família – traz o engano e a perfídia nos olhos cheios de sedução e de graça. Dissimulada por índole, a insídia é nela, por assim dizer, instintiva e talvez inconsciente”

A crítica vai mais além:

Ardilosa e pérfida, acautelada e fingida, Capitu soube ocultar aos olhos do marido a sua ligação criminosa com Escobar. A verdade aparece a Bentinho esgarçada, a espaços, pelos fios tenuíssimos de coisas mínimas, que ele compara umas às outras, nas suas noites de insônia

Linda Catarina Gualda

Há também uma análise sobre a obra em que a figura de Capitu é a “soma e fusão de múltiplas personalidades, espécie de supermulher toda ela só instinto metida na pele de uma pervertida requintada e imprevisível”. Ora, aí estão as imagens de mulher insubmissa ao patriarcado: ardilosa, pérfida, fingida, pervertida e dissimulada. Pode-se acrescer que a construção machadiana, bem como para os críticos ora mencionados, tudo deveria ser calmo, tranquilo e suave, refletindo, portanto, a mulher que a sociedade produzia e estabelecia como ideal a ser fomentado.
Capitu, contudo, foge do modelo de mulher e, em razão de tal aspecto, merece ser expulsa de casa simplesmente por ser forte. De fato, a personagem paga um preço elevado por não se adequar ao modelo misógino-androcêntrico do período em que a construção da narrativa machadiana é concebida, pois expressa seus sentimentos e não se contenta com a reclusão do círculo familiar. Ademais,


(...) Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me

 Joaquim Maria Machado de Assis


A força que emana dos olhos de Capitu só encontra comparação com a sua força enquanto mulher. Aliás, a descrição inicial de Capitu, em Dom Casmurro, denuncia, de uma maneira peculiar, o temor do modelo androcêntrico estabelecido em âmbito social, qual seja: o empoderamento feminino como um processo afirmativo de reconfiguração do feminino em relação ao masculino. De muitas formas, Capitu, com seus olhos de ressaca e oblíquos, é um paradigma para se entender, mesmo diante de uma clara misoginia, o processo de lutas femininas, enquanto segmento estereotipado da sociedade brasileira. Isto é, mulheres enquanto sinônimos de extensões dos homens, dóceis e frágeis.

Capitu, de muitas maneiras, é a percursora de um processo de reconhecimento, empoderamento e ruptura de modelos tradicionais. Ainda que subsista a dúvida ao final acerca do possível adultério, está em Bentinho a maior fragilidade, qual seja: um homem incapaz de conviver com uma mulher de essência forte e determinada; um homem infantilizado e amargo; um homem típico de uma sociedade tradicional conservadora que teima em controlar e subordinar os corpos femininos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Páginas