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sábado, 14 de setembro de 2019

O amor lésbico na Literatura Japonesa - Tauã Lima Verdan

O amor lésbico na Literatura Japonesa

- “VORAGEM”, DE JUNICHIRO TANIZAKI: 
A SUTILEZA DO AMOR LÉSBICO NA LITERATURA JAPONESA DA DÉCADA DE 1930 - 


Por Tauã Lima Verdan

A rigor, como leitor e consumidor de literatura, sempre penso qual a lição pode e deve ser extraída das páginas produzidas. Nos últimos anos, em razão de uma especial dedicação a temática da sexualidade e sua relação com o processo de reconhecimento de direitos, exercício da cidadania e ruptura de valores tradicionais engessados, tenho me dedicado à leitura de romances e afins voltados para as minorias sexuais. É certo que a minha leitura tem se concentrado em analisar a produção nacional, a exemplo de Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha, e a antologia Resilientes, organizada por Vanessa Nunes.

Em ambos os casos, a literatura apresenta o contraste e os elementos próprios de uma realidade multifacetada, complexa e intrincada tipicamente brasileira.

De fato, uma produção nacional sobre temática de minorias sexuais tem ganhado cada vez mais notoriedade e difusão entre aqueles que compreendem que a literatura, antes de tudo, desempenha uma função social de resistência e de leitura da realidade existente. Ao se analisar o cenário brasileiro, é imprescindível reconhecer que a questão envolvendo minorias sexuais se reveste de complexa análise, pois a intolerância e a discriminação são estruturalmente estabelecidas. Mais do que isso, é necessário apontar que LGBTIfobia é uma realidade comum e que se encontra manifestada inclusive na omissão do Estado enquanto posição política.

Sim! A omissão do Estado no enfrentamento da matéria e da temática também se coaduna com a premissa de posição política, pois a ausência de uma agenda especificamente voltada para a questão ou, ainda, o desmonte das estruturas já estabelecidas toca diretamente no processo de inviabilização de tal grupo. Apenas à guisa de informação, o Brasil é o país que mais mata minorias sexuais em decorrência da condição da sexualidade. Como título, também, de exemplificação, o Grupo Gay da
Bahia (GGB), apenas em dados relativos ao ano de 2018, registrou o número de 420 (quatrocentos e vinte) mortes de integrantes da população homoafetiva e transexual, computando-se homicídio ou suicídio decorrente da discriminação. 

Veja-se: a questão da condição das minorias sexuais no Brasil não é cômoda nem fácil, mas, ainda assim, com muita luta e sangue derramado, alcança espaço e vocaliza interesse de um grupo diversificado e multifacetado que exige a conquista de direitos e o tratamento mais isonômico possível.

Bem, estabelecidos estes pontos e ao considerar que a literatura desempenha um papel importante enquanto instrumento de denúncia social, faz-se necessário reconhecer que a sigla designativa tradicional das minorias sexuais apresentou uma ampliação considerável, com o objetivo de amparar as diversas nuances da manifestação da sexualidade. 

Assim, a tradicional sigla LGBT, utilizada, desde a década de 1990, para designar o movimento gay, hoje, apresenta a seguinte concepção:
LGBTQQIACAPF2K+, cujo significado, em inglês, compreende: lésbicas (lesbian), gay (gay), bissexual (bisexual), transgêneros (transgender), queer, questionamentos (questioning), intersexuais (intersex), assexuais (asexual), agêneros (agender), aliados (ally), curiosos (curious), pansexuais (pansexual), polissexuais (polysexual), amigos e família (friends and family), 2 espíritos (two-spirit) e kink, esta última letra fazendo alusão àqueles que têm excitação sexual usando maneiras ou artefatos pouco usuais ou comuns. 

De fato, os designativos, apesar de tentarem agrupar, de maneira linear, as múltiplas sexualidades, apresenta um outro viés, qual seja; o reconhecimento a partir da conquista do espaço.

Apresentados estes comentários que implicam no reconhecimento das lutas e manifestações em prol do protagonismo de grupos tidos como vulneráveis, volto-me para o objeto central desta coluna, a saber: o romance japonês “Voragem”, de Junichiro Tanizaki. O romance é ambientado no cenário do Japão das décadas de 1920-1930 e, como tal, é regado de sutileza e detalhes preciosos para se perceber a temática homossexual feminina. De acordo com Gotoda,

Escrito originalmente em forma de fascículos entre 1928 e 1930 para uma  revista japonesa, é um dos romances mais aclamados de Junichiro Tanizaki. No centro da trama está Sonoko Kakiuchi, uma jovem casada que frequenta o curso de arte. Nas aulas, ela conhece Mitsuko, uma colega de beleza estonteante por quem se vê perdidamente apaixonada. Sem conseguir frear seu desejo, Sonoko se aproxima em uma pretensa relação de amizade e forja contato cada vez mais íntimo, despertando rumores ao seu redor.

Mitsuko, por sua vez, é implacável e não tarda a enredar sua amante em uma trama de chantagens. Voragem é uma obra-prima sobre amor e traição, verdades e mentiras, perversão e ciúme.

Antes de avançar na proposta da coluna, vou usar a descrição apresentada pelo tradutor para debater um pouco sobre romances com temática especificamente homossexual feminina (lésbica). Neste ponto, repito:

Voragem é uma obra-prima sobre amor e traição, verdades e mentiras, perversão e ciúmes
(GOTODA, 2018)

A temática envolvendo a homossexualidade feminina, de maneira cultural, a partir de um viés especificamente eurocêntrico e androcêntrico, foi desvirtuada a um processo fetichizador heterossexual dominante. Na realidade, a possibilidade do envolvimento amoroso-sexual entre duas mulheres, por uma questão essencialmente misógina e cultural, povoa o imaginário masculino como uma fantasia sexual.

Neste aspecto, Minervino afirma: 

elas fazem parte do erotismo masculino, o troféu almejado por qualquer homem como meio de comprovação da sua masculinidade. Transar com duas mulheres ao mesmo tempo é coisa de macho, hétero cis, homem viril

No entanto, pouco importa, a partir de uma cultura androcêntrica, que as mulheres homossexuais integrem a letra “L” da sigla designativa das minorias sexuais. Neste passo, ainda, justamente ancorado em uma cultura retrógrada, há a afirmação que uma mulher lésbica não sofre tanto preconceito quanto um homem gay em razão do fetiche masculino de ir para cama com duas mulheres ao mesmo tempo. No entanto, lésbicas não são para satisfazer os fetiches heterossexuais.

O romance de Tanikazi transparece uma relação muito mais complexa e densa do que a idealização puramente sexual e fetichista que, por vezes, que é apresentada na visão tradicional androcêntrica que povoa a mentalidade cultural brasileira acerca de um romance com viés homossexual feminino. Neste aspecto, o romance apresenta o enlace entre duas mulheres em momentos distintos de suas respectivas existências. 

Sonoko, a figura central do romance, espelha a figura de uma mulher frustrada, apesar de estar em um casamento estável, com um marido devotado e uma vida econômica estabilizada. A vida “quase” perfeita dela só é modificada pela monotonia sempre repetida e cotidiana, o que, aliás, afeta até mesmo a forma como se relaciona com o mundo e com a família que possui.

A figura do marido da protagonista, inclusive, aparece no romance com claros aspectos secundários, ora como um homem fiel devotado à sua esposa, ora como um homem fraco que, mesmo sabedor das relações de sua esposa com a jovem Mitsuko, é incapaz de oferecer resistência. Há um claro contraste entre a força e a determinação de Sonoko e a fraqueza e inexpressividade de seu cônjuge. A determinação da mulher não pode ser contida pelo esposo que, como coadjuvante de uma estória alheia, apenas observa e, em dados momentos, tenta esboçar uma reação, uma demarcação de um território, sem, contudo, ter muito êxito.

Sonoko, de muitas maneiras e com a sutileza transportada por Tanikazi, encarna o estereótipo da mulher em uma sociedade patriarcal e androcêntrica. Em um primeiro momento, contida e limitada aos desejos e às proposições alheias que repousam sobre sua figura, sobre seu corpo e sobre a forma como a sociedade espera de seu comportamento. 

Contudo, em um rompante de mudança, Mitsuko se apresenta como o paradigma capaz de mudar o cenário do conformismo e sopra novos ares de rebeldia e ruptura em uma vida milimetricamente pensada e vivida. É a sensação de que, por mais estranho que pareça, a vida cria mecanismos, enreda tramas, constrói cenários que catapultam as pessoas para uma nova realidade e novas experiências


Encontre o autor em:

Facebook: Tauã Lima Verdan
Instagram: @tauãverdan

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