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domingo, 29 de setembro de 2019

Os invisibilizados e sua expressão na literatura - Tauã Lima Verdan

“QUARTO DE DESPEJO”, DE CAROLINA MARIA DE JESUS: O DIÁRIO DE UMA FAVELADA COMO DENÚNCIA SOCIAL DOS INVISIBILIZADOS



Por Tauã Lima Verdan


A formação da sociedade brasileira passa, necessariamente, por repensar o papel de protagonismo desempenhado por determinados grupos sociais em detrimento de outros. Neste aspecto, a construção do país perpassa, necessariamente, em reconhecer decisões que tocaram e afetaram grupos que foram alijados de todo o processo, sendo-lhes negados direitos, oportunidades e renegados a uma marginalização. A partir disso, valores que foram secularmente preservados passaram a emoldurar uma sociedade brasileira que tentava, a todo custo, imitar os aspectos europeus além-mar. Assim, em razão da cultura religiosa, patriarcal/androcêntrica e escravagista, o preconceito se alastrou no território brasileiro como elemento constituinte da formação. 

Normalizou-se o processo de exclusão e a busca, a todo custo, pela manutenção de grupos hegemônicos, sobretudo a partir de estruturas sociais de reprodução da desigualdade, a exemplo de mandonismo, coronelismo e o elitismo embranquecido brasileiro.

Doutro modo, o Estado, com a busca pela manutenção dos “pilares” formacionais brasileiros, estabeleceu estruturas e aparatos típicos de reprodução das desigualdades. Neste sentido, em decorrência dos valores mencionados acima, a legislação brasileira, em especial as normas voltadas para o Direito Penal, e o assistencialismo tomaram robustez como medidas de manutenção da ordem estabelecida.

No Direito Penal, por exemplo, as normas do final do século XIX e início do século XX tendem a reproduzir arquétipos que são excludentes. Neste passo, pode-se citar a penalização da prática da capoeira, tipicamente desempenhada pelos negros, bem como a adoção de conceitos moralizadores como “mulher honesta” e “mulher pública” para se referir a crimes contra a honra.

É importante ter em mente que o ordenamento normativo de um Estado, enquanto produção tipicamente ideológica, é pensado para refletir um conjunto determinado de valores capaz de atender uma classe ou grupo que se encontra no exercício do poder. Com efeito, no Brasil, não foi diferente. 

A partir disso e de algumas outras inquietações, nesta coluna, resolvi trazer a contribuição da escritora Carolina Maria de Jesus, que é a manifestação mais robusta, no período de sua produção, da contrariedade dos valores tidos como tradicionais: mulher, negra, pobre e filha “ilegítima” – esta expressão cai em desuso no Direito brasileiro com a promulgação da Constituição Federal de 1988 – e que retrata, em sua obra, o grito dos invisibilizados.

A mineira Carolina Maria de Jesus chegou a São Paulo em 1947. Em terras paulistas a autora não teve emprego fixo, mas trabalhou principalmente de doméstica, largando o trabalho quando engravidou de seu primeiro filho. Nessas circunstâncias, a autora foi morar na favela de Canindé, que ainda estava em formação. Desse modo, a autora passou a se dedicar mais à leitura e à escrita. Assim, ao se empenhar mais no mundo literário, a escrita tornou-se válvula de escape para desabafar as desigualdades as quais sofreu durante toda sua vida
Keila Karina Sousa Martins

A obra “Quarto de Despejo: diário de uma favelada” apresenta uma ótica que rompe com os aspectos tradicionalmente estabelecidos na produção literária nacional. Assim, “o texto, escrito pela catadora de lixo Carolina Maria de Jesus, aponta para a forma como a sociedade brasileira da década de 50 é retratada, sob a perspectiva de uma mulher pobre e negra, cuja formação escolar não ultrapassa o segundo ano da educação primária”
Maricélia Nunes dos Santos e Wagner de Souza

Dotada de uma densidade perceptível, a obra traz à tona um grito que foi, durante séculos, emudecido. É uma produção que reflete o papel desempenhado por grupos invisibilizados em uma sociedade que, de maneira estrutural, estabelece a invisibilidade como componente básico da formação. Os temas que são tratados na produção de Carolina Maria de Jesus são reveladores no tocante à condição das classes mais baixas e a negação institucional de direitos básicos.

O livro Quarto de despejo de Carolina Maria de Jesus tem como um de seus aspectos marcantes a sua escrita. Ao passo que problematiza e narra temas como a fome e a miséria, exprime sensibilidade em relatá-los e demonstra seu caráter humano diante as questões de desigualdades. Relatar a fome e a miséria na literatura pode ter o risco de tornar a obra mais de cunho social do que literária, mas a autora une essas duas vertentes com maestria. Nesse sentido, a obra de Carolina é importante para entender as classes sociais e também a condição daqueles que são tirados os direitos humanos de ter moradia, comida e escolaridade. Direitos que são cerceados pela disputa de poder instaurada desde o Brasil colônia. Por outro lado, mesmo sensibilizando o leitor com temas sociais, o conteúdo literário é extremamente poético. A autora convida o leitor, a partir de seu diário, a conhecer sua trajetória. O leitor acompanha a narrativa que envolve Carolina, seus vizinhos e as agruras do seu dia a dia
Keila Karina Sousa Martins

Como uma denúncia de forte tom social, Carolina Maria de Jesus traz à tona a realidade dos invisibilizados. Mesmo com a pouca formação instrucional, o texto é denso e dotado de uma elevada carga poética, com linguagem rebuscada e um cenário meticulosamente fiel à realidade. A triste sina não é mascarada pelas palavras; ao contrário, o cenário de precariedade, por mais chocante, é apresentado ao leitor com a complexidade em que é vivenciado.

20 de maio. O dia vinha surgindo quando eu deixei o leito. A Vera despertou e cantou. E convidou-me para cantar. Cantamos. O João e o José Carlos tomaram parte. Amanheceu garoando. O sol está elevando-se. Mas o seu calor não dissipa o frio. Eu fico pensando: tem época que é Sol que predomina. Tem época que é a chuva. Tem época que é o vento. Agora é a vez do frio. E entre eles não deve haver rivalidades. Cada um por sua vez. Abri a janela e vi as mulheres que passam rápidas com seus agasalhos descorados e gastos pelo tempo. Daqui a uns tempos estes palitol (sic) que elas ganharam de outras e que de há muito devia estar no museu, vão ser substituídos por outros. É os políticos que há de nos dar. Devo incluir-me, porque eu também sou favelada. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo 
Carolina Maria Jesus

Veja-se que a favela, pela autora, enquanto espaço dos invisibilizados sociais, é caracterizada como um quarto de despejo em que se amontoa tudo o que era ruim e o que não prestava. A abordagem de Carolina Maria de Jesus deixa transparecer a discrepância existente entre as classes sociais. As problemáticas diárias não são amenizadas, a exemplo da fome vivenciada pelos pobres. Justamente, a partir de tal contexto, a literatura, há muito negligenciada, ganha especial destaque como vocalização de denúncia social.

O papel desempenhado pela autora é dotado de especial relevância, ao se analisar a literatura produzida, pois, é a “voz feminina que emerge em sua narrativa configura papéis de mulher negra, da mãe solteira e de trabalhadora”. Assim, os papeis reais que constituem a obra decorrem da voz feminina que possibilita perspectivas da vivência diária do povo negro silenciada e embranquecida em razão do racismo e do sexismo enraizado no cotidiano dos brasileiros.


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