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terça-feira, 25 de agosto de 2020

Os 5 anos da Editora Malê | Entrevista com Vagner Amaro

A Editora Malê surgiu a partir do desejo de ampliar e difundir a publicação de autoria de escritores negros, bem como a distribuição em livrarias e eventos literários, onde víamos pouca representatividade de escritores negros, apesar da nossa produção literária ser frequente e constante no decorrer das últimas décadas. Vagner Amaro é bibliotecário, jornalista e editor da Malê, que neste ano completa cinco anos de existência. Criou o Prêmio Malê de Literatura, que tem por objetivo revelar novas vozes da literatura contemporânea e teve como primeira autora publicada Conceição Evaristo, nesses cinco vêm editando e publicação diversos autores brasileiros, bem como Africanos, edita a Mahin, uma revista também focada em literatura negra, produz eventos literários e a cada dia vem reafirmando a importância de seu trabalho. Confira nossa entrevista:


Foto: Fco Jorge
Foto: Fco Jorge


Publiquei. Vagner, sabemos que existe um certo apagamento do povo negro dentro do mercado literário, seja quanto personagens, até mesmo o reconhecimento de grandes escritores negros clássicos e contemporâneos, dentro dessa perspectiva, onde se enquadra o trabalho da editora Malê?

Amaro. Eu não acredito que seja um apagamento, o apagamento consistiria em uma ausência total de existência, de vida literária de autores negros.  Existem alguns efeitos do racismo de estrutura que vai afetar a produção e a circulação dos textos dos autores negros.  Afeta a produção porque jovens negros são desacreditados pela escola, pela família e pela sociedade de modo geral, existe um conjunto de discursos comunicados incessante para a infância e juventude negra que diz: você não é capaz, não sonhe, não tente, não crie.  Afeta porque vivemos em uma sociedade que desperdiça a vida de muitos jovens negros. Quantos jovens negros que são assassinados que não poderiam se tornar escritores? Então, a vida da população negra no Brasil é muito dura, sacrificante e vulnerável, diante disso, como elaborar algum tipo de literatura quando a maior preocupação é se manter vivo? A escola tem sido um ambiente hostil para muitas crianças negras, tudo isso poda a imaginação dessas crianças e reduz a possibilidade de surgimento de mais escritores negros.  Seria perverso exigir a força de expressão de vida e de arte de uma escritora como Carolina Maria de Jesus, que em determinado momento da vida, lutava diariamente pela comida e ainda assim escrevia.  Mas, assim como Carolina, outros indivíduos negros, por razões muito diversas, germinam em si um escritor, transitam nas margens do sistema e fazem que a suas vozes literárias tenham eco, cheguem aos leitores.  Enquanto a literatura pode ser a única grande preocupação para o escritor branco, para o escritor negro, essa preocupação, essa habitação de ideias, de leituras, de criação, vai quase sempre ter que dividir espaço com a tragédia cotidiana que é o racismo, um racismo que se faz ser lembrando a todo instante, que precisa ser reencenado sempre para a manutenção de uma estrutura que privilegia os brancos.  Então, se o racismo de estrutura afeta em muitos casos a produção, ele vai afetar plenamente a circulação dos textos, pois para o texto circular se depende de mediadores (livrarias, distribuidores, escolas, prêmios, eventos, planos de distribuição de governos, empresas voltadas para a leitura), e em todas essas áreas existirão pessoas que desqualificam a literatura produzida pelos escritores negros, pessoas limitadas, e mal intencionadas, que apenas conseguem imaginar um número muito restrito de ocupações e de habilidades para as pessoas negras, e as atividades intelectuais não fazem parte do imaginário dessas pessoas como algo que um indivíduo negro possa fazer com excelência, com propriedade e sensibilidade. 

Mas iniciei dizendo que não vejo como apagamento, pois precisaria ver a comunidade de escritores negros como um coletivo passivo diante do racismo de estrutura e não é isso que ocorre, durante toda a história da literatura brasileira escritores negros estiveram atuantes, e muitos dos movimentos mais significativos desta literatura foram formulados por escritores negros e tiveram esses escritores como seus expoentes.  Nosso trabalho enquanto intelectuais negros é o de reescrever essa história e formular um futuro em que tentativas de embaçamento da nossa potência literária não seja mais permitida. Nessa reescritura, por exemplo, a literatura brasileira contemporânea se inicia em 1960, com a publicação de Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, e Machado de Assis, o maior escritor da literatura brasileira, é, o que sempre foi, embora tenham tentado sequestrar a identidade dele, um menino pobre, negro, do morro, que entendeu como poucos, a sociedade brasileira.  O trabalho da Malê se dá nessa reescritura, lançando um olhar para esse passado mal contato, intervindo no presente e formulando um futuro com uma presença mais nítida e incontornável dos escritores negros na cena literária brasileira.


Foto: Érida Ferreira. Lançamento de Histórias de leves enganos e parecenças
no Centro Cultural da Justiça Federal (RJ) em junho de 2016.


Pub. A Malê surge ao mesmo tempo em que vários coletivos e escritores e intelectuais negros começam a trabalhar com mais empenho para mostrar ao País a literatura produzida por nós. Como você, enquanto editor, vê esses movimentos?

Amaro. Acho que respondi um pouco na primeira pergunta, considero esses movimentos essenciais, se hoje, há um maior interesse do mercado editorial nos escritores negros, isso é fruto de movimentos negros e do trabalho de escritores e editores negros.  Eu acredito que os efeitos são lentos quando se fala de literatura, mas em alguns anos teremos uma parcela maior da população mais ciente da existência de escritores negros, mais interessada na literatura de autoria negra e menos cética em relação ao que esse grupo de escritores produz.  Percebo também que os sistemas de produção e recepção literária tendem a mudar, porque a luta pela garantia da diversidade na literatura, como um direito, não é apenas da literatura negra, é também da literatura indígena, da literatura escrita por mulheres, da literatura da comunidade lgbtqi+, essa luta se dá na academia, se expressa no consumo, e não está desconectada dos outros movimentos sociais, se a gente pensa que Cadernos Negros surgiram junto com o Movimento Negro Unificado, que as reuniões de grupos de literatura negra como o Negrícia aconteciam no IPCN, ou que a literatura escrita por mulheres tem na sua história uma conexão estreita com o feminismo, e nas conexões entre luta dos povos indígenas e literatura indígena, concluímos que quanto maior for o avanço das lutas das minorias sociais, quanto mais efetiva for a conquista por direitos, maior será a possibilidade de se quebrar os bloqueios que fazem com que textos de apenas um grupo muito específico desfrute dos investimentos mais eficazes para a produção, divulgação e circulação literária.


Pub. Em uma entrevista recente vi que seu objetivo com a Malê é publicar e distribuir autores negros já consagrados, que vêm publicando há algumas décadas, como Conceição Evaristo, Ele Semog, Lia Vieira, e também incentivar a produção e publicação de jovens escritores. Como você enxerga a publicação dessas novas vozes, como vê o futuro da nossa literatura contemporânea?

Amaro.  É um cuidado que temos, dentro do nosso possível, incentivar a literatura de novos escritores.  Isso ocorre de um jeito sistemático com o Prêmio Malê de Literatura, com a nossa aproximação com a Flup – Festa Literária das Periferias e com a avaliação que fazemos de originais, temos publicado os primeiros livros de muitos escritores, do pessoal do SLAM, autores que estão publicando o primeiro infantil.  O escritor precisa treinar sua escrita e testar seu texto, isso vai aprimorá-lo como escritor, a partir da recepção, da crítica, do amansamento das inseguranças, compare o primeiro livro de um autor com seu livro mais recente e percebemos uma evolução. Mas, isso não quer dizer que todo mundo está pronto para publicar, me preocupa muito a ansiedade em publicar, pessoas que leem pouco, que treinaram pouco a escrita, e já querem publicar, pelo espetáculo.  Então, vejo a cena literária muito afetada pelo o que ocorreu nos últimos 20 anos no Brasil em que o escritor foi para o centro da cena, e não mais o livro, o texto.  Essa inserção dos eventos literários no mercado cultural, garante uma vida financeira menos frágil para muitos escritores, já que não se vive de direitos autorais, mas tiram o foco do leitor no que de fato interessa que é a obra, quando tira o foco do leitor já é grave, mas quando tira também o foco do autor, é trágico.  Acredito que a possibilidade de um bom futuro para a literatura contemporânea passa pela valorização da crítica literária, pela valorização da obra,  pela ampliação de um trabalho sério e não eventual de formação de leitores e pelo direcionamento do mercado para a diversidade na literatura, é isso que pode trazer uma nova substância para a vida literária, o que vai contribuir positivamente na criação.


Lançamento do livro de Giovana Xavier na Casa das Poéticas Negras
na FLIP 2019 com a presença de Conceição Evaristo! Foto: reprodução



Pub. A editora Malê está completando 5 anos agora nesse mês, e o catálogo da editora só cresce a cada dia. Teve o caso de algum escritor que você queria muito publicar e ficou feliz quando pode editar uma pessoa específica?

Amaro.  Primeiro, a Conceição Evaristo, a editora só faria sentido se ela topasse.  Fiquei extremamente feliz em editar o Cuti, que considero um mestre, tenho um respeito e uma admiração imensa por ele, e o sim do Muniz Sodré foi um dos momentos mais felizes da minha vida. Muniz Sodré é o maior intelectual desse país.

Pub. O trabalho da editora Malê vai além de editar seus livros e autores, além do concurso para jovens escritores, a editora também produz muitos eventos literários e tem um serviço de assessoria melhor do que de muitas editoras, inclusive editoras “maiores”, como funciona esse acúmulo de funções?

Amaro. É desgastante, mas a editora foi pensada para estar no mercado concorrendo com editoras que já estavam estabelecidas.  Quando se traça este objetivo e se é pobre com pouquíssimos recursos, a única riqueza que se tem é a inteligência, a competência e a força de trabalho.  Outra questão imprescindível é ter seriedade no que se faz, integridade para que as pessoas confiem em você, e saber comunicar o seu objetivo, a verdade e força da sua intenção, para encontrar os aliados e para que entendam suas vitórias como vitórias coletivas.  Essa é a fundação, se ela for construída sobre fragilidades, vai ruir, ficar falso, não vai empolgar. Eu sou um homem negro, que vivi e vivo todas as agressões de uma sociedade racista, de origem pobre, que desde a infância fui apaixonado por livros, leitura e escrita, essa é a fundação, isso não se contorna.  Se a Malê deixar de existir continuarei sendo este homem. Então, nos primeiros anos da editora, eu trabalhei praticamente das oito da manhã às onze da noite, com um acúmulo de uma diversidade de funções muito grande e sem retorno financeiro.  Acredito que o efeito colateral disso é que boa parte dos “grandes momentos da editora” eu não estava inteiro e nem pude saborear como deveria ser, pois estava com mais cinco mil tarefas acumuladas me assombrando na memória e o efeito positivo é que conseguimos até o momento atravessar esse tempo, mesmo com todas as incertezas e turbulências do Brasil nestes últimos cinco anos.



Lançamento de Água de Barrela, de Eliana Alves Cruz 
na Livraria da Travessa Foto: Reprodução


Pub. Neste período de isolamento social, com o fechamento por um período de todos os estabelecimentos físicos e o cancelamento dos principais eventos literários do País, a editora Malê se reinventou e a partir de lives trouxe um conteúdo bastante relevante com a maioria dos seus escritores, como foi produzir todos esses encontros e trabalhar em uma nova dinâmica?

Amaro. Fomos umas das primeiras editoras, ou talvez a primeira a fazer um grande evento literário online na pandemia, foram cerca de vinte encontros, durante um mês. Depois realizamos outros eventos e deixamos de fazer por entender que o modelo rapidamente se desgastou. Mas naquele momento teve uma importância muito grande para editora, para os autores, para os nossos leitores, ainda estavam começando a acontecer as lives, ainda estávamos diante do susto, sem saber muito bem como seriam os próximos dias.  Os três livros que lançamos este ano, foram impactados diretamente pela pandemia.  Produzir o evento foi maravilhoso e poder conversar com tantos autores que eu edito foi muito afetuoso.  Eu pude mediar todos os encontros, então foram encontros de editor e autor, que sempre rendem boas conversas, eu entendo que após a vacina, logo que as pessoas descansarem um pouco das telas, a tendência é que todo grande evento literário tenha uma interface online. 

Pub. Como tem sido a procura para publicação de outros autores negros. Percebo nesses últimos anos que a Malê se tornou uma verdadeira referência dentro do mercado editorial, isso se reflete na procura de outros autores?

Amaro. A procura é grande.  Acho que vale destacar que a procura por bons textos de autores negros também aumentou no mercado editorial, o que é muito positivo, reflete que minimamente houve uma mobilidade na estrutura racista, o momento é de atenção para depois de um tempo, que pode durar anos, verificar se este interesse do mercado é apenas eventual, ou se de fato os bloqueios editoriais estão sendo quebrados.  Não dá para avaliar agora, seria inocente.  Mas um dia este grupo de escritores e editores negros fará de alguma forma uma reflexão sobre o que de fato se modificou no mercado e o que ganhamos e perdemos com isso.  A literatura negra é uma literatura contra-hegemônica e de combate, em uma sociedade racista é coerente que ela seja assim, pois do contrário esse escritor, que não se coloca em alguma medida contra o racismo, através do seu discurso, postura e literatura, perde uma via para pensar o seu tempo, ele perde, e toda a comunidade negra perde com ele.  No caso da Malê, acredito que o que entregamos para o leitor, o produto da editora, e a visibilidade alcançada por autores que editamos, desperta o interesse em outros, em nos procurar para editar os seus livros.  


Pub. O mercado ainda é muito cruel, digamos, não vejo nada que possa facilitar o surgimento e a manutenção de pequenas editoras para alcançar um sucesso e estabilidade dentro desse nicho, quais foram as dificuldades nesses anos que a editora precisou ou precisa enfrentar?

Amaro. O mercado é formado e conduzido por um grupo de grandes, médios e pequenos empresários,  então a editora Malê faz parte do mercado, e para não ser ingênuo seria interessante endereçar bem as nossas críticas, ocorre que muitas práticas do mercado editorial não são estimulantes para as pequenas editoras, e o mercado como um todo também não é tão interessante nem mesmo para as grandes, vende-se pouco livro de literatura brasileira contemporânea no Brasil, é uma literatura que chega pouco nas escolas, que recebe pouca atenção dos professores, então, existe uma comunidade muito restrita de consumidores de livros de literatura brasileira atual (vou usar atual aqui). Eu acredito que seria interessante que coletivamente as pequenas editoras buscassem criar indicações para as relações com livrarias e distribuidoras e gráficas e que existissem políticas públicas voltadas para as pequenas editoras, dentro de uma perspectiva de garantia da diversidade cultural na literatura.  Sobre nicho, eu acredito que pensando o mercado como um todo, o nicho é a literatura brasileira atual, não enxergo a literatura negra como um subnicho.  Uma dificuldade que ainda encontramos está nas empresas que não querem distribuir, ou vender nossos livros, mesmo que tenhamos vendas expressivas de alguns títulos. No Brasil, o racismo consegue ser mais poderoso que o capitalismo, e para muitos, ainda é melhor lucrar menos que difundir a autoria negra.  


Pub. Em relação aos eventos literários, acredita que os produtores e curadores têm dedicado um olhar mais atento na escolha de seus autores, há uma procura dos autores negros para participar da grade dos eventos ou ainda há uma resistência de trazer nossos autores para eventos específicos?

Amaro. Eu percebo que essa mudança começa a acontecer com a Flip de 2016, curiosamente em 2016, ainda como bibliotecário, eu produzi e fiz a curadoria de uma festa literária que se chamou Literatura e Resistência, um evento lindo, que teve como convidados Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Daniel Munduruku, Marcelo d Salete, Eliane Potiguara, Cristiane Sobral... Então, sim, a procura por autores negros aumentou, mas ter jornalistas, escritores, editores, pesquisadores negros na curadoria e produção, na tomada de decisões desses eventos é algo essencial para continuarmos avançando.  Não basta convidar alguns escritores negros, acredito que a mudança neste campo só se dará de forma mais efetiva, se atingir a área de tomada de decisões. 


Lançamento do livro ELES - Contos, de Vagner Amaro
na livraria da Travessa Foto: reprodução.



Pub. Em relação aos originais que recebe e ler diariamente, quais são os erros mais comum que encontra e o que um autor, principalmente estreante, pode se atentar para melhorar e apresentar um original mais publicável?

Amaro - Encontrar um bom leitor para o seu texto é essencial, um leitor sincero.  Ser também, o próprio autor, um leitor sincero do seu texto.  Ter o cuidado de pedir uma revisão antes de enviar o texto para a editora, enviar apenas quando estiver seguro de que produziu um bom material, entender que muitos autores começam a publicar por autopublicação, enviar um material que se configure em um livro, ler muito bons autores antes de enviar o seu texto.  Perguntar antes se a editora está recebendo material, verificar o perfil editorial de cada editora e mandar apenas para a editora dentro do perfil do que você escreveu, se inscrever em muitos concursos antes, para ter mais leitores competentes para o seu texto.  No caso de poesia, entender que versos irregulares não significam que tudo é poesia, tentar sumir no próprio texto, não confundir ficção com desabafo, não ter medo de desabafar ao fazer ficção, não imitar, ter coragem até mesmo para assumir que gostar de escrever não faz de ninguém um escritor.


Pub. Para finalizarmos, gostaria de agradecer o seu tempo e pedir para nos dizer o que deseja nos próximos cinco anos da editora. Mais uma vez, a equipe da Publiquei gostaria de parabenizar pelo excelente trabalho!

Amaro. Eu agradeço o espaço, sou fã do trabalho que vocês desenvolvem.  Eu espero que nos próximos cinco anos a editora mantenha o seu padrão de crescimento e consiga contribuir mais para a formação de leitores, em especial para a formação de leitores para todas as literaturas que ainda não encontram tanto espaço na cena literária brasileira.


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