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quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Colunas Literárias: Olhar de classes na Literatura

“CLARA DOS ANJOS” DE LIMA BARRETO: 
- A DENÚNCIA SOCIAL NAS PALAVRAS DA POBRE MENINA CLARA -


Por Tauã Lima Verdan

A partir de um contexto tal complexo, a partir do ponto de vista da institucionalização da violência doméstica contra a mulher e o processo de normalização verificado, a coluna se propõe a fazer uma análise de “Clara dos Anjos”, de Lima Barreto. Para tanto, o exame se baseia na forma como a temática se apresenta, tanto no que concerne à denúncia social quanto à denúncia étnica, de gênero e de violência estabelecida.

A peculiaridade a ser observada está nos contrastes entre o título da obra e a personagem homônima, posto que Clara, na realidade, não é clara, mas sim uma mulata; ao lado disso, o nome dos Anjos que transparece a concepção de pureza, de inocência, também é colocado em contradição quando é seduzida por Cassi Jones.

“A contradição do nome também serve para reafirmar a crítica à fatalidade sócio-racial na obra. Dessa forma, o nome Clara dos Anjos e as referências evocadas assumem o papel de polo contraditório da denúncia” 
FURTADO, 2003, p. 82 

Trata-se de uma ironia estruturada, com o escopo de despertar a reflexão no leitor. A personagem central da obra se apresenta como uma jovem pálida, inexpressiva e que reunia os estigmas próprios do início do século XX, notadamente o de ser uma pobre mulata. A falta de expressão de Clara dos Anjos retrata a ausência de voz dos excluídos, marginalizados e da população da classe menos abastada, que se aninhava nos subúrbios, sufocados e achatados pela exploração da elite. Neste diapasão, cuida trazer à tona a descrição ofertada pelo autor acerca de sua personagem, havendo que se destacar a forma expressiva com que estruturas críticas à formação de Clara dos Anjos:

Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que precisava mãos fortes que a modelassem e fixassem. Seus pais não seriam capazes disso. A mãe não tinha caráter, no bom sentido, para o fazer; limitava-se a vigiá-la caninamente; e o pai, devido aos seus afazeres, passava a maioria do tempo longe dela. E ela vivia toda entregue a um lânguido de modinhas e descantes, entoadas por sestrosos cantores, como o tal Cassi e outros exploradores da morbidez do violão. O mundo se lhe representava como povoado de suas dúvidas, de queixumes de viola, a suspirar amor. Na sua cabeça, não entrava que a nossa vida tem muito de sério, de responsabilidade, qualquer que seja a nossa condição e o nosso sexo. Cada um de nós, por mais humilde que seja, tem que meditar, durante a sua vida, sobre o angustioso mistério da Morte, para poder responder cabalmente, se o tivermos que o fazer, sobre o emprego que demos a nossa existência. Não havia, em Clara, a representação, já não exata, mas aproximada de sua individualidade social; e, concomitantemente, nenhum desejo de elevar-se, de reagir contra essa representação. A filha do carteiro, sem ser leviana, era, entretanto, de um poder reduzido de pensar, que não lhe permitir meditar um instante sobre o destino, observar os fatos e tirar ilações e conclusões. A idade, o sexo e a falsa educação que recebera, tinham muita culpa nisso tudo; mas a sua falta de individualidade não corrigia a sua obliquada visão da vida 
Afonso Henriques de Lima Barreto

Infere-se que Lima Barreto, ao traçar os aspectos característicos de sua personagem, aborda a educação e a proteção exacerbada da família que atalha a inteligência, cerra a visão para a vida e os perigos existentes. Além disso, o emprego dos adjetivos “amorfa” e “pastosa” são comumente utilizados para descrever mulheres no início do século XX, transparecendo a necessidade de um homem, com mãos fortes, para moldá-las, adequá-las à vida.

Sem dúvidas, Clara dos Anjos reúne em sua estrutura o arquétipo da mulher, sob o ângulo de uma sociedade machista, agravado, de maneira rotunda, por ser mulata e pobre, desprovida de grande inteligência. “Clara não possui uma ideia transparente sobre a sua situação dentro da sociedade, em parte pela educação que recebera de seus pais” 
GILENO, 2001

Lima Barreto denuncia à sociedade o padrão de comportamento erigido, o qual obrigava aos libertos e seus descentes a uma adequação aos valores burgueses existentes. Desta maneira, não era o suficiente tão apenas os arquétipos adotados pela sociedade, sendo necessário, além disso, “se comportar como branco, na verdade tornava-se imprescindível negar-se como afrodescendente, buscar o branqueamento da pele por meio de sucessivos casamentos miscigenados”. Os valores arraigados na sociedade imperial ainda gozavam de grande e proeminente destaque, notadamente na elite do início do século XX, na qual as negras e mestiças continuavam a se revestir de má reputação, decorrente de estrutura escravagista, alicerçadas por axiomas patriarcais, como se infere das passagens em D. Salustiana manifestava-se avessa à possibilidade de Cassi Jones contrair matrimônio com uma de suas vítimas.

Conquanto as violências sexuais não mais fossem sistematicamente praticadas por abastados fazendeiros ou ignóbeis capatazes ou ainda por curiosos filhos dos senhores da casa grande, Lima Barreto denuncia a situação de penúria que jovens negras, mulatas e brancas humildes que eram seduzidas e defloradas por jovens integrantes da elite existente. Nesse sedimento, o autor atribuía, ainda, à educação distinta, utilizada por D. Engrácia que que não preparava a jovem para vida adulta,
como elemento que fomentava o aumento dos defloramentos. O complexo de inferioridade é algo palpável no romance, Clara, tolamente, anseia por um matrimônio que servisse como um instrumento apto a retirá-la da vida de reclusão que vivenciava. 

Além disso, casar com um homem branco está próximo do pensamento bastante difundido nessa época, porque esse tipo de matrimônio avaliza positivamente a ideologia científica de cunho racial em voga, com livre curso nos meios republicanos e nacionais, da constituição da família brasileira via apagamento dos traços mestiços denunciadores do estigma da escravidão, efetuado pelo cruzamento com as raças brancas – ditas superioras – com a finalidade de promover um futuro melhoramento racial.
Afonse Henriques de Lima Barreto

“Clara dos Anjos”, enquanto romance de cunho de denúncia, apresenta-se como trama, conquanto despida de um linguajar rebuscado e pomposo, multifacetada, dotada de complexidade, que permite uma análise a partir de distintos seguimentos, vez que, de modo cristalino, retrata a sociedade do início do século XX. O preconceito racial e social vivenciado pela personagem principal, trazendo à luz ainda as profundas e dolorosas feridas da escravidão, revelam um pensamento pautado na valoração de arquétipos que valorava o homem branco, detentor de posse, dinheiro ou influência, em detrimento das camadas mais carentes, que era suplantadas e subjugadas. Aliás, a indignação de tais camadas está corporificada nas linhas finais, quando Clara dos Anjos, amadurecida pela humilhação, pelo defloramento e pelo funesto destino, à sua genitora diz:

Num dado momento, Clara ergueu-se da cadeira em que se sentara e abraçou
muito fortemente sua mãe, dizendo, com um grande acento de desespero:
— Mamãe! Mamãe!
— Que é minha filha?
— Nós não somos nada nesta vida 
Afonso Henriques de Lima Barreto

O excerto transcrito não traz em seu bojo apenas o desespero de uma jovem deflorada, desonrada, grávida e abandonada por seu sedutor, o ardiloso homem branco, de uma família pseudo-elitizada. Na declaração da personagem, há múltiplos significados que, de maneira velada, trazem à baila a realidade caótica da sociedade brasileira do início do século XX, são os gritos contidos de tantas outras vítimas, homens e mulheres apáticos pela sobrevivência difícil, vencidos pela árdua caminhada, despidos de ambição e achatados pela demais camadas, que infestam os subúrbios cariocas tão bem conhecidos e retratados pelo autor.


Encontre o autor em:

Facebook: Tauã de Lima Verdan
Insta: @tauaverdan

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